segunda-feira, maio 02, 2005

O Aborto e o PS

Bem sei que já passou um ror de tempo e já ninguém fala nisso mas ainda estou a matutar na coisa. Não, não é no fundamental da opção, aborto ou não, mas na forma como o projecto vencedor está arquitectado e foi apresentado. Vários partidos de esquerda (de facto, todos os partidos de esquerda, PCP, BEV e PS) apresentaram projectos de alteração à lei penal. Foi aprovado o do PS (Projecto Lei 19/X). Ao mesmo tempo foi aprovada uma Resolução (Projecto de Resolução 9/X) que propõe a realização de um referendo sobre a descriminalização da interrupção voluntária da gravidez realizada nas primeiras dez semanas.
Por mero acaso tive oportunidade de assistir ao debate Parlamentar e às perguntas que foram feitas, nomeadamente pelo Deputado Nuno Melo, bem como as respostas que não foram dadas. Quando vi a ilustre deputada do PS furtar-se à resposta a curiosidade aguçou-se-me. Porque seria aquele fugir à questão ? Estaria o deputado perguntante a ser estapafurdio, como foi acusado ? Até podia ser... nada como verificar. E fui ver. E comparei o texto do referendo proposto, o texto do projecto de alteração do Código Penal e a actual redacção do artigo em causa (o 142º). Reza o actual:

Livro II Parte especial
Título I Dos crimes contra as pessoas
Capítulo II Dos crimes contra a vida intra-uterina
Artigo 142º Interrupção da gravidez não punível

1 - Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o consentimento da mulher grávida quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:
a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;
b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida, e for realizada nas primeiras 12 semanas de gravidez;
c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de doença grave ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas ecograficamente ou por outro meio adequado de acordo com as leges artis, excepcionando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada a todo o tempo;
d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual e a interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas.
2 - A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez é certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada.
3 - O consentimento é prestado:
a) Em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo e, sempre que possível, com a antecedência mínima de 3 dias relativamente à data da intervenção;
b) No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz, respectiva e sucessivamente, conforme os casos, pelo representante legal, por ascendente ou descendente ou, na sua falta, por quaisquer parentes da linha colateral.
4 - Se não for possível obter o consentimento nos termos do número anterior e a efectivação da interrupção da gravidez se revestir de urgência, o médico decide em consciência face à situação, socorrendo-se, sempre que possível, do parecer de outro ou outros médicos.

A alteração proposta é a seguinte:

Artigo 142°
Interrupção da gravidez não punível

1 - Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico ou sob a sua direcção, em estabelecimento oficial ou oficialmente reconhecido com o consentimento da mulher grávida, nas seguintes situações:
a) a pedido da mulher e após uma consulta num Centro de Acolhimento Familiar, nas primeiras dez semanas de gravidez, para preservação da sua integridade moral, dignidade social ou maternidade consciente;
b) (actual alínea a);
c) caso se mostre indicada para evitar perigo de morte ou grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica, da mulher grávida, designadamente por razões de natureza económica ou social, e for realizada nas primeiras 16 semanas de gravidez;
d) (actual alínea c);
e) (actual alínea d).
2- Nos casos das alíneas b) a e), a verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez é certificada através de atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção, por médico diferente daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada.

Já o referendo propõe a seguinte pergunta:

"Concorda que deixe de constituir crime o aborto realizado nas primeiras 10 semanas de gravidez, com o consentimento da mulher, em estabelecimento legal de saúde?"

Pelo exposto supra fico na dúvida sobre o alcance do referendo. Ou seja, para que serve ele ao certo. Sendo vinculativo, caso votem o número suficiente de cidadãos, ele servirá para vincular os deputados a quê? Caso, por exemplo, o resultado seja NÃO, o que acontece ao projecto de Lei 19/X ? Morre e é enterrado ? Ou morre apenas a alteração à alinea a) do artigo 142º mas manter-se-á a nova redacção da alínea c)? É que se atentarmos na nova redacção do artº 142º a novidade da alínea a) não tem importância nenhuma quando comparada com a da nova alínea c). Vejamos:

A aínea a) permitirá que o aborto seja realizado até às dez semanas por mero pedido da mulher sob invocação de uns motivos que não oferecem qualquer dificuldade de preencher e que não se sabe bem o que são (integridade moral, dignidade social ou maternidade consciente ?).

A alinea c) permite que o aborto se realize nas primeiras 16 semanas caso se mostre indicado para evitar perigo de morte ou grave e duradoura lesão para o corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulhar grávida (já aqui se verifica um aumento de 4 semanas em relação à previsão anterior da ex-alínea b)) designadamente (aqui vem a novidade) por razões de natureza económica ou social. Falha-me o entendimento. Calculo que as razões de natureza económica ou social não venham a causar a indicada lesão ao corpo ou à saude física, apenas à psíquica. Mas razões de natureza económica podem causar grave e duradoura lesão à saúde psíquica ? E que razões de natureza social serão essas ?
Perdoem-me a cupidez mas, não será facil, atendendo ao carácter vago destes requisitos, preenchê-los em qualquer caso ? Não estaremos a assitir à liberalização do aborto até às 16 semanas ?

Sendo que o Projecto de Lei preconiza "Pretende-se que seja o Parlamento, por excelência, a assumir as responsabilidades de garante do espaço democrático e de liberdade" não será que, seja qual for o resultado do referendo a despenalização do aborto até às 16 semanas está aprovada ? Então para quê prosseguir com um referendo que não vai decidir nada ? Para fingir que é o povo quem decide ?